Em pequenas comunidades virtuais, o que importa não é a quantidade, mas a afinidade e o prazer — espaços virtuais onde é possível fazer trocas significativas com pessoas
Acredito que este não seja o primeiro texto que você lê falando sobre as redes sociais, seus efeitos e o futuro das mesmas, provavelmente não será o último também. Chegamos a um ponto onde todos já lemos sobre o quão nociva e irreal a experiência nas grandes comunidades da internet como Facebook e Instagram podem ser, todos já compartilhamos, consumimos, conseguimos likes e esquecemos. Essa é a lógica. A frase “falem bem, falem mal, mas falem de mim” faz sentido como nunca. E, quanto mais discutimos as redes, parece que mais elas crescem e mais nocivas à nossa qualidade de vida elas se tornam.
Mas aqui o foco será algo mais específico, a memória. E a primeira incitação que cabe é: me conte sobre você! Para responder isso, será preciso, sem dúvidas, acessar nossas memórias — o que fizemos, sentimos, comemos, vimos, ouvimos, fomos, vivemos. O problema é que para isso provavelmente teremos que recorrer às redes. Em vez de nos lembrarmos do cheiro do restaurante, teremos que lembrar se a decoração foi interessante o suficiente para tirarmos várias fotos. Para lembrar de uma viagem, teremos que pensar nas horas de caminhada em busca do local perfeito, com a cor perfeita, para a foto perfeita. Para lembrar de uma pessoa, teremos que olhar para as fotos taggeadas com o rosto dela. Deixamos de viver o momento para viver a busca pelo registro perfeito do momento.
“Nas condições da alta modernidade, não só seguimos estilos de vida, mas num importante sentido somos obrigados a fazê-lo — não temos escolha senão escolher.” — Anthony Giddens
A memória digitalizada
Hoje, nossa memória é atrelada ao uso de redes sociais. Nelas conseguimos mostrar quem somos, como vivemos, o que pensamos, lemos, como e com quem socializamos. O problema é que essas memórias são falsas. Logo, quem somos não passa de um registro digital. Todos sabem que o que compartilhamos na internet são versões editadas, curadas e filtradas de nós mesmos. Versões idealizadas. Viramos uma ideia, e com isso perdemos a capacidade de lembrar o que vivemos, pois tudo acontece através da tela e da câmera.
Buscando preencher a solidão que atinge boa parte das últimas gerações, idealiza-se uma versão de como se deveria ser, para que sejamos amados, venerados, invejados e desejados. O problema é que, muitas vezes, essa versão sequer é quem gostaríamos realmente de ser, e sim quem imaginamos que nossos seguidores gostariam que fôssemos. Adaptamo-nos de acordo com a platéia, animais de circo treinados a não ter vontade própria e a dançar conforme a música. Sentimo-nos mal se não provocamos muitas palmas para a nossa performance.
“O mundo construído de objetos duráveis foi substituído pelo de produtos disponíveis projetados para a imediata obsolescência. Num mundo como esse, as identidades podem ser adotadas e descartadas como uma troca de roupa.” — Zygmunt Bauman
Dos dois lados o comportamento se torna sem meio, apenas com o fim de desejar e ser desejado. Quando tiramos fotos de algo para as redes sociais, não queremos compartilhar a experiência de fato, mas sim o privilégio em poder ter, fazer, ou supostamente ser. Assim, quando vemos a mesma foto em nossos feeds, não desejamos ter o prazer daquilo, mas sim ser a pessoa que está tendo esse prazer. O momento, quando se torna um fim para as redes, perde seu propósito para se tornar algo meramente estético. A memória passa a vir da imagem digitalizada, e não das nossas experiências e tudo que está atrelado a ela.
Ditch the Label
Vida para ser vista ou vivida?
Tudo isso faz com que as pessoas sejam obcecadas pela ideia de levar uma vida supostamente interessante, uma vida que possa gerar desejo, seguidores, likes e comentários. Isso significa deixar de aproveitar para poder registrar. E, sendo assim, não estamos refletindo quem somos, estamos distorcendo. Essa distorção, no entanto, é perfeita para o que chamamos de personal branding, ou seja, se transformar numa marca, editada e photoshopada a fim de conseguir o maior número de compradores possíveis.
Nas redes é sempre possível parecer inteligente e interessante, adequado aos padrões de beleza e símbolos de desejo — os filtros e ferramentas são diversos. Porém a vida real das pessoas não é assim. Numa conversa cara a cara é impossível apagar infinitas vezes o que dizer antes de enviar a melhor versão; é impossível que editemos a nós mesmos, com as pontas dos dedos, ao acordar, antes da pessoa ao seu lado abrir os olhos. É impossível não ser você para ser ideal o tempo todo.
Nesse esforço, nos perdemos, desgastamos e, principalmente, esquecemos de como existimos. A partir do momento em que ser objeto de propaganda e imagem é mais importante que ser e vivenciar, apagamos da memória quem somos para nos tornar o que vendemos.
Identidade passa a ser commodity, produto para consumo massivo.
Cria-se, a partir das redes, um mercado de identidades, onde em vez de compartilharmos quem somos, vendemos quem somos. Um dia já pensamos na internet como um local virtual que poderia permitir troca de experiências, gostos e anseios, que poderia criar uma comunidade global através da identificação coletiva. Mas hoje a internet é um grande negócio. O que era diversão tornou-se obrigação, a paranóia de se vender de algum jeito não permite que se aproveite as infinitas possibilidades de troca que existem na palma de nossas mãos. A própria identidade, algo tão singular, se tornou fragmentada, adaptada e moldada de acordo com o público-alvo e não de acordo com nossas vivências.
“Selecionar os meios necessários para conseguir uma identidade alternativa da sua escolha não é mais um problema (isto é, se você tem dinheiro suficiente para adquirir a parafernalha obrigatória). Está à sua espera nas lojas um traje que vai transformá-lo imediatamente no personagem que você quer ser, quer ser visto e quer ser reconhecido como tal.” — Zygmunt Bauman
Criado para millennials, rejeitado pela nova geração
No entanto, os maiores vendedores e compradores desse mercado de identidades acabaram sendo os millennials. Tendo nascido com um pé no analógico e outro no digital, eles acabam comprando a ideia do futuro, seja como for. Ficam, então, perdidos num mar de informações, onde tudo o que se faz e vive é matéria digna de ser anunciada. Millennials são, talvez, o grande pôster do poder da tecnologia e da transformação, anúncios ambulantes do que foi e do que pode ser. Seu papel é fazer com que os mais velhos sintam-se obsoletos e que os mais novos desejem ser como eles.
“Quanto mais a vida social se torna medida pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais identidades se tornam desvinculadas — desalojadas — de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem ‘flutuar livremente’.” — Stuart Hall
Porém a história muda um pouco com a geração Z, uma vez que as falhas das vidas editadas são cada vez mais claras de se ver. Os que começam a chegar ao mundo hoje, já completamente imersos no mundo digital, conseguem enxergar através dos sorrisos em frente a paredes especialmente colorida para fotos. Vêem a solidão, o desejo de pertencimento, a superficialidade, e vêem também que, muitas vezes, não se é feliz como se vende. Vêem, também, que a grande comunidade da internet foi transformada em um grande mercado. E isso eles não vão comprar. Desenvolveram um ceticismo único, pois não acreditam na realidade super editada que é vendida mundo afora. Para muitos, a verdade hoje é tão alternativa que deixou de existir.
Entretanto, a solução para tudo isso pode estar na própria internet. Afinal ela também é parte da vida real, com o melhor e pior que ela tem a oferecer. Assim nascem pequenas comunidades virtuais, em que o que importa não é a quantidade, mas a afinidade e o prazer. Espaços virtuais onde é possível fazer trocas significativas com pessoas que realmente se importam com o que se tem a dizer, que não querem apenas verem e serem vistos.
Jovens poetas e escritores mandam seus textos para listas de e-mail em que apenas interessados apreciarão suas palavras. Ilustradores, artistas e designers procuram pequenos nichos online em que o que importa não é a quantidade de likes que suas obras recebem, mas sim o quão significativo aquilo pode ser para quem vê.
Muitos, então, percebem que não precisam ser estrelas da internet para encontrar validação para o seu trabalho ou vida. Precisam apenas de um fiel e pequeno grupo, em que a identidade não é vendida, mas compartilhada.
Ainda assim é possível vender e monetizar seu trabalho com ferramentas como Patreon e Drip, porém de maneira real e orgânica.
A geração Z e o internet microstar
Este pode ser o futuro: pequenas comunidades onlines em que o alcance das grandes corporações é limitado, em que não é preciso trocar informações pela oportunidade de mostrar nosso estilo de vida, em que nem tudo é patrocinado. Comunidades em que o valor não está na possibilidade de se tornar uma marca, mas na possibilidade de se tornar real. É preciso que nossos estilos de vida existam para nos agradar, não que existamos para consumí-lo.
Trata-se, porém, de um exercício de desapego da validação online em massa — o que pode ser muito difícil. Muitos acreditam que a solidão sentida ao transformar suas vidas em um reality show será intensificada sem as redes. Porém, ao perder a tela, ganha-se tudo que está a sua volta. Ao ser obrigado a perceber as coisas, as pessoas, os lugares, os cheiros e os prazeres ao redor, perceberemos que nunca estivemos sozinhos. A memória é algo único, é a partir dela que se consegue criar, reinventar e aprender. Com ela, tornamo-nos mais que seres, tornamo-nos donos de uma identidade única. É por isso ela deve estar na nossa cabeça, não na nuvem digital.
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